terça-feira, 5 de setembro de 2017

Textos da avaliação de LP

A sopa de pedras

Pedro Malasarte era um cara danado de esperto. Um dia ele estava ouvindo a conversa do pessoal na porta da venda. Os matutos falavam de uma velha avarenta que morava num sítio pros lados do rio. Cada um contava um caso pior que o outro:
– A velha é unha-de-fome. Não dá comida nem pros cachorros que guardam a casa dela – dizia um.
– Quando chega alguém pro almoço, ela conta os grãos de feijão pra pôr no prato. Verdade! Quem me contou foi o Chico Charreteiro, que não mente– afirmava outro.
– Eta velha pão-duro! – comentava um terceiro. – Dali não sai nada. Ela não dá nem bom-dia.
O Pedro Malasarte ouvindo. Ouvindo e matutando.
Daí a pouco entrou na conversa:
– Querem apostar que pra mim ela vai dar uma porção de coisas, e de boa vontade?
– Tu tá é doido! – disseram todos – Aquela velha avarenta não dá nem risada!
– Pois aposto que pra mim ela vai dar – insistiu o Pedro.
– Quanto vocês apostam?
A turma apostou alto, na certeza de ganhar. Mas o Pedro Malasarte, muito matreiro, já tinha um plano na cabeça. Juntou umas roupas, umas panelas,um fogãozinho, amarrou a trouxa e se mandou pra casa da velha. Era meio longe, mas pra ganhar aposta o Malasarte não tinha preguiça.
O Pedro foi chegando, foi arranchando, ali bem perto da porteira do sítio da velha. Esperou um tempo pra ser notado. Quando viu que a velha já tinha reparado nele, armou o fogãozinho, botou a panela em cima, cheia de água,
e acendeu o fogo. E ficou o dia inteiro cozinhando água.
A velha, lá da casa, só espiando. E a panela fumegando.
E o Pedro atiçando o fogo.
Não demorou muito, a velha não aguentou a curiosidade e veio dar uma espiada. Passou perto, olhou, assuntou, e foi embora. O Pedro firme, atiçando o fogo.
No dia seguinte, panela no fogo, fervendo água, soltando fumaça. Pedro atiçando o fogo. A velha olhando de longe, lá de dentro da casa.
Até que ela não conseguiu mais se segurar de curiosidade. Saiu e veio negaceando olhar de perto. O Pedro pensou: "É hoje!".
Catou umas pedras no chão, lavou bem e jogou dentro da panela. E ficou atiçando o fogo pra ferver mais depressa.
A velha não se conteve:
– Oi, moço, tá cozinhando pedra?
– Ora, pois sim senhora, dona – respondeu o Pedro. – Vou fazer uma sopa.
– Sopa de pedra? – perguntou a velha com uma careta. – Essa não, seu moço! Onde já se viu isso?
– Pois garanto que dá uma sopa pra lá de boa.
– Demora muito pra cozinhar? – perguntou a velha ainda duvidando.
– Demora um bocado.
– E dá pra comer?
– Claro, dona! Então eu ia perder tempo à toa?
A velha olhava as pedras, olhava pro Pedro. E ele atiçando o fogo, e a panela fervendo. A velha meio incrédula, meio acreditando.
– É gostosa, essa sopa? – perguntou ela depois de um tempo.
– É – respondeu o Malasarte – Mas fica mais gostosa se a gente puser um temperinho.
– Por isso não – disse a velha. – Eu vou buscar.
Foi e trouxe cebola, cheiro-verde, sal com alho.
– Tomate a senhora na senhora não tem? –perguntou o Pedro.
A velha foi buscar e voltou com três, bem maduros. Pedro botou tudo dentro da panela, junto com as pedras. E atiçou o fogo.
– Vai ficar bem gostosa – disse ele. – Mas se a gente tivesse um courinho de porco...
– Pois eu tenho lá em casa – disse a velha. E foi buscar.
Couro na panela, lenha no fogo, a velha sentada espiando. Daí a pouco ela perguntou:
– Não precisa pôr mais nada?
– Até que ficava mais suculenta se a gente pusesse umas batatas, um pouco de macarrão...
A velha já estava com vontade de tomar a sopa, e perguntou:
– Quando ficar pronta, posso provar um pouco?
– Claro, dona!
Aí ela foi e trouxe o macarrão e as batatas.
O Malasarte atiçou o fogo, pro macarrão cozinhar depressa.
Daí a pouco a velha já estava com água na boca!
– Hum, a sopa tá cheirando gostosa! Será que as pedras já amoleceram?
Em vez de responder, o Pedro perguntou:
– A senhora não tem uma linguicinha no fumeiro? Ia ficar tão bom...
Lá foi a velha de novo buscar a linguiça.
Cozinha que cozinha, a sopa ficou pronta.
Malasarte então pediu dois pratos e talheres, a velha trouxe.
O Pedro encheu os pratos, deu um pra ela. Separou as pedras e jogou no mato.
– Ué, moço, não vai comer as pedras?
– Tá doido! – respondeu o Malasarte. – Eu lá tenho dente de ferro pra comer pedra?
E tratou de se mandar o mais depressa que pôde. Foi correndo pra venda, cobrar o dinheiro da aposta.

(In: Contos populares para crianças da América Latina.
São Paulo: Ática, 2000. Co-edição latino-americana. p. 8 a 15.)


avarenta: pão-duro, unha-de-fome, pessoa que tem apego exagerado ao dinheiro
negaceando: contra a sua própria vontade
matutos: pessoas do campo
matutando: pensando
matreiro: esperto
incrédula: que não acredita
arranchando: acomodando




Capítulo VIII

A onça

O miado soou de novo, desta vez bem perto, e logo depois surgiu, por entre as folhas a cabeça de uma formidável onça-pintada. Era um animal de extrema beleza, quase tão grande como o tigre de Bengala. Parou; farejou o ar. Depois ergueu os olhos para a árvore. Dando com o menino e o saci lá em cima, soltou um rugido de satisfação, como quem diz: "Achei o meu jantar!" E tentou subir à árvore. Vendo que isso lhe era impossível, sacudiu o tronco tão violentamente que por um triz Pedrinho não veio abaixo, como se fosse jaca madura. Mas não caiu, e a onça, desanimada, resolveu esperar que ele descesse. Sentou-se nas patas traseiras e ali ficou quieta, só movendo a cauda e passando quando em quando a língua pelos beiços.
— Ela é capaz de permanecer nessa posição três dias e três noites — disse o saci. — Temos que inventar um meio de afugentá-la.
Olhou em redor, examinando as árvores como quem está com uma ideia na cabeça. Depois saltou para a mais próxima e foi de copa em copa até uma que estava cheia de grandes vagens. Escolheu meia dúzia das mais secas e voltou para junto do menino.
— Apare nas mãos o pó que vou deixar cair destas vagens — disse ele, abrindo com os dentes uma delas.

Pedrinho estendeu as mãos em forma de cuia e o saci sacudiu dentro um pó amarelado. O mesmo foi feito com as outras vagens.
— Bem. Agora derrame este pó bem a prumo, de modo que vá cair sobre a cara da onça.
Pedrinho colocou-se em linha vertical com a fera e derramou de um jato o pó amarelo.
Foi uma beleza aquilo! Quando o pó caiu sobre os olhos da onça, ela deu tamanho pinote que foi parar a cinco metros de distância, sumindo-se em seguida pelo mato adentro, a urrar de dor e a esfregar os olhos como se quisesse arrancá-los.
Pedrinho deu uma risada gostosa.
— Que diabo de pó é este, amigo saci? — perguntou.
—Vejo que vale mais que uma boa carabina...
— Isso se chama pó-de-mico. Arde nos olhos como pimenta e dá na pele uma tal coceira que a vítima até se coçara com um ralo de ralar coco, se o tiver ao alcance da mão.
Pedrinho escorregou da árvore abaixo, ainda a rir-se da pobre onça. Mas não se riu por muito tempo. Mal tinha dado alguns passos, recuou espavorido.

Fonte: O Saci de Monteiro Lobato

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